terça-feira, 14 de agosto de 2018

O Clube Aberto de Woody Allen

É mais que certo que Woody Allen ama a morte num sentido especial: se desde pequeno que a realidade dela é dolorosa de enfrentar, o caminho mais correto será percorrer o provérbio “se não podes vencê-los, junta-te a eles” e utilizá-la como um mecanismo artístico e cinematográfico.

Aposto que, tal como eu, Woody Allen se lembra do dia em que se tornou consciente da sua mortalidade. Para nós, sensíveis neste tema em particular, a vida nunca mais foi a mesma. Os dias que se seguiram têm sempre um resquício de luta contra a ideia de que “todos, tudo, nada permanece”.

Havendo ou não um clube para gente assim, “não gostaria de pertencer a algum que me aceite como membro” e nunca me senti compreendida nesta questão, até ver “Annie Hall” e dizer para o meu cérebro “és a criança no psicólogo que está deprimida porque o universo se está a expandir”. E tal como o universo em expansão que é pobremente ignorado, a minha cabeça também se expandia em questões sem resposta, questões relativas à ideia estranhamente libertadora de que num futuro (“daqui a biliões de anos”) não haverá ninguém – nenhuma fonte de ser vivo – que possa citar de cor um soneto de Shakespeare.

Annie Hall (1977)

A ideia horripilante da morte ganhou várias perspectivas ao longo dos anos, como em todos nós, e quão gratos estamos que a de Woody Allen se tenha transformado numa espécie muito específica de arte cómica. Como no filme “Shadows and Fog”, a morte pode ganhar a forma de um assassino em série (que é, seguindo as leis ideais humanas, a sua forma natural), apenas para “ensinar” à personagem principal (uma ramificação de Woody) que, tal como um truque de magia, a nossa vida consiste na maneira como a decidimos distorcer. “Toda a gente adora ilusões. Precisa delas, como precisamos de ar” diz o mágico Armstead a Kleinman, da mesma maneira que nós dizemos a nós próprios, geralmente inconscientemente, sempre que a imagem pessoal da morte nos vem à cabeça.

No que toca à imagem que criamos desta morte, ela poderá ter dimensões mais divertidas do que outras: desde a morte jogadora de xadrez, a morte bailarina (ambas da cabeça de Bergman, sendo que a última foi posteriormente adotada por Woody Allen), a velha morte com um manto preto e uma ceifa na mão, até ao maléfico chefe que, como em “Deconstructing Harry”, te vai buscar a casa, não sabendo do facto de que não eras tu que deverias estar a morrer.

Podemos concluir que a vida sim, é cheia de “solidão, miséria, sofrimento e infelicidade, e que tudo acaba demasiado cedo” – frase utilizada directamente em alguns filmes de Woody e utilizada indirectamente em todos eles. Como coexistir com isto então? O mágico Armstead dá uma possibilidade de resposta, que podemos revisitar sempre que nos esquecermos momentaneamente dela. Mas o encontrar de uma resposta não é o aparecimento mais imediato, sendo substituído por perguntas que surgem à velocidade da luz. Woody Allen cria assim o seu clube, deixando cada uma das suas perguntas em personagens dos seus filmes que, tal como a Harry em “Deconstructing Harry”, aparecem vivas para nós.

Assim, podemos todos colocar a pergunta que Mickey faz em “Hannah and Her Sisters”: “e se o pior for verdade? E se não existir Deus e vivermos só uma vez e acaba? Não queremos fazer parte da experiência?”. Nos dias bons, e fico feliz por poder admitir que estes fazem parte da generalidade dos dias, a resposta é simples: sim. Quero fazer parte da experiência. Para isso aceito distorcer alguns pensamentos, somente para o bem, e mentir um pouco a mim própria com o propósito de me “distrair”. Para quem se quiser juntar, qualquer filme do Woody Allen será óptimo para começar.
Maria Pinto